A minha primeira escolinha, vista através dos galhos desfolhados da figueira.
COMO
APRENDI A LER E ESCREVER
Escrevi num poema em prosa que “saí analfabeto da escolinha de sítio da
minha infância”. Escrevo esta crônica neste Dia dos Professores para desfazer a
ideia errada que deixei entrever a quantos leram aquele poema. Devo esta
homenagem a minha primeira professora, essa heroína que deu a vida para tentar
o impossível: alfabetizar-me.
A Dona Conceição não tem culpa de não ter conseguido. Eu é que tinha uma
enorme dificuldade de aprendizagem.
Eu tinha dificuldade para ler e escrever, algo semelhante ao que hoje
chamamos de dislexia. Esse era o meu problema, que eu superei com exercícios de
dicção – embora não fosse dificuldade para falar o que eu tinha. Um enigma.
Apenas há uns dez anos a dislexia está sendo bem estudada. Em 1954 e 1955, a Dona Conceição não
poderia saber como lidar com o caso. Se nem os professores de hoje sabem!
Eu sei, mas nem queria contar, porque ninguém me acreditará. Estava na
terceira série ginasial e era na prática um analfabeto. Comecei meu tratamento pondo
pedregulhos na boca, como Demóstenes fazia para ensaiar os seus discursos.
Não conseguia articular bem os fonemas, então pus um lápis atravessado na
boca: a dificuldade para articular ainda era enorme, mas doía menos do que com
os pedregulhos.
Falei textos e mais textos de forma ininteligível. Aos poucos, agora sem
o lápis entre os dentes, de forma mais compreensível. De repente eu estava
entendendo o que lia.
Foi como o “estalo de Vieira”. Sem mais nem menos (mas só eu sei quanto
custou esse “sem mais nem menos”), eu me transformei, não num gênio como o
Padre Vieira, mas em um cara inteligente.
Há quem explique o “estalo de Vieira” como uma pedrada na cabeça que lhe
abriu a mente, tornando-o de idiota em gênio. No meu caso, não foi uma pedrada, mas várias
pedras na boca, e depois um lápis – já que a minha dificuldade era escrever.
Eu era meio estúpido; quem me conheceu antes e depois, viu em mim
lampejos de gênio.
A opinião dos parentes não vale: veem com os olhos do amor, nunca viram a
minha estupidez intelectual.
A Dona Conceição dizia que eu tinha “letra de galinha”. É uma
característica dos disléxicos: escrevem como as galinhas ciscando, só produzem
borrões, tanto ciscam no mesmo lugar.
E era o tempo em que se escrevia molhando a pena no tinteiro, uma pena
que vivia se abrindo no meio...
“A sua mãe se mata de trabalhar, e você...” – me dizia a Dona Conceição.
Eu, como qualquer menino de sete ou oito anos, não tinha noção do que era “se
matar de trabalhar” – mas também não tinha noção do que lia ou escrevia.
Ainda hoje, com mais de 60 anos de idade, de vez em quando me distraio e
não entendo o que estou lendo, leio uma palavra com outro significado, ou com
outras letras, com outra posição das mesmas letras, sem nenhum sentido, ou com
um sentido totalmente diferente daquilo que estava escrito.
Ou escrevo palavras que nem eu entendo: “ciosa” ou “sacio” ou “sioca” em
lugar de “coisa”; “porco” ou “cropo” ou “proco” em lugar de “corpo”.
Eu achava, que “não tinha jeito” para matemática ou qualquer ciência
exata. Acontece que até hoje altero involuntariamente a ordem dos algarismos ou
outros símbolos. Leio 862 ou 682 ou 826 quando está escrito 268...
Com quinze anos de idade, eu lia – atrapalhadamente. O bastante para
repetir vezes sem conta poemas e mais poemas – até, como por encanto, passar a
lê-los com desenvoltura, entendendo-os, sentindo-os.
Dona Conceição conseguiu sua proeza meio tardiamente, mas conseguiu. Foi
pensando nela que eu consegui a grande façanha de aprender a ler e escrever.
Com quinze anos de idade escrevi meu primeiro poema e minha primeira
crônica. E até hoje continuo a rabiscar um texto ou outro, nem que seja apenas
para provar a mim mesmo que sei escrever.
José Carlos Brandão
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